Por Jonas Valente
“E qual você acha que deve ser o compromisso do novo Governo?”. A pergunta foi feita pelo então coordenador da campanha presidencial de Luís Inácio Lula da Silva em 2002, Antônio Palocci, a João Roberto Marinho, herdeiro do império das Organizações Globo, em uma discussão sobre o esboço do que viria a ser conhecido como Carta aos Brasileiros. O documento selou uma série de compromissos do governo Lula com a burguesia nacional e internacional, incluídos aí os conglomerados de mídia.
A relação da gestão de Lula com o setor não foi estabelecida apenas no âmbito programático. Logo no início da primeira gestão, em 2003, setores dentro do Palácio do Planalto cogitaram patrocinar um programa de socorro aos grupos de comunicação que estavam em sérias dificuldades financeiras depois de terem contraído empréstimos em dólar. Esse custo ficou alto demais após a crise do real do final dos anos 1990. O “proer da mídia” (uma referência ao programa de ajuda aos bancos promovido pelo governo FHC) não foi para frente, mas o entendimento de que seria possível e desejável uma relativa cooperação com os grupos de mídia floresceu nos corredores da Esplanada.
Já o Ministério das Comunicações (Minicom), no xadrez da composição partidária, terminou nas mãos do PDT. O partido indicou a atual deputado carioca Miro Teixeira (PDT) para o comando da pasta. A gestão teve forte influência do sindicalismo da área das telecomunicações. A equipe chegou a esboçar novas diretrizes para as políticas de telecomunicações, mas não tocou na estrutura do modelo excludente que emergiu da privatIzação do sistema Telebrás.
Influenciado por uma visão de fomento à pesquisa e ao desenvolvimento nacionais, a gestão de Miro Teixeira formulou o Decreto 4.901/2003, que estabeleceu diretrizes para a implantação do Sistema Brasileiro de TV Digital Terrestre (SBTVD-T). Além de fixar objetivos inclusivos, na prática a norma estabeleceu um programa de pesquisa para estimular que universidades desenvolvessem soluções brasileiras para esta nova plataforma.
Para a Globo
No entanto, após o estouro da crise do mensalão, a ampliação do espaço do PMDB na Esplanada atingiu o Minicom com a nomeação de Eunício Oliveira. Com uma gestão apagada, o hoje senador cearense foi substituído pelo ex-repórter da Rede Globo e então senador por Mina Gerais e representante dos interesses do empresariado de mídia no Congresso, Hélio Costa. A entrada dele marcou a ocupação orgânica de um quadro ligado aos conglomerados de mídia no órgão central das políticas de comunicação no governo Lula.
Costa chegou com uma missão clara: desenrolar a implantação da TV Digital no país de acordo com os interesses dos radiodifusores. E foi exatamente o que fez. Em pouco tempo, desarticulou o programa de pesquisa promovido por Miro Teixeira e serviu como patrocinador do padrão japonês. Este era defendido pelos radiodifusores por manter o mesmo modelo de ocupação de canais da tecnologia analógica, impedindo o uso da nova plataforma para ampliar o número de emissoras.
Sem novidades e sendo uma versão melhorada da velha TV analógica, a TV digital se constituiu como um caso de fracasso no país. Embora essa nova tecnologia já esteja disponível para 45% da população, segundo o Fórum Sistema Brasileiro de TV Digital, ela só ganhou penetração depois que uma decisão do governo federal exigiu que televisores acima de 32 polegadas incluíssem o conversor digital necessário para captar o sinal digital.
Além de garantir seus interesses na definição do SBTVD, os radiodifusores conseguiram dinamitar iniciativas que poderiam ter impactos democratizantes importantes na área. A primeira foi a tentativa de transformar a Agência Nacional de Cinema (Ancine) em Agência Nacional do Audiovisual (Ancinav). A segunda foi o projeto de criação do Conselho Federal de Jornalistas (CFJ). Após intenso bombardeio dos veículos comerciais, nenhuma das duas propostas foi para frente.
Durante a primeira gestão de Lula, houve dois esforços para atacar um dos maiores desafios do setor: analisar todos os pedidos de outorgas de rádios comunitárias e desburocratizar o processo. Dois grupos de trabalho foram criados para buscar soluções para estes problemas, mas nenhum deles ensejou mudanças concretas nos procedimentos voltados a estas emissoras. Ao contrário, a partir da segunda gestão de Lula e durante o governo Dilma, as estações comunitárias sem licença continuaram sendo duramente reprimidas pela Polícia Federal e pela Agência Nacional de Telecomunicações. A gestão atual do Minicom piorou a condição dessas emissoras ao publicar a Norma nº 1 de 2011, que amplia as exigências burocráticas para a solicitação de autorização e restringe o já limitado mecanismo de financiamento dessas rádios: o apoio cultural.
Um escorpião
Nas eleições de 2006, mesmo após o governo ter atendido aos interesses dos radiodifusores em relação ao modelo de TV Digital, os conglomerados de mídia evidenciaram a “natureza de escorpião” oposicionista. A cobertura do escândalo que envolvia a suposta compra de um dossiê para prejudicar o então candidato ao governo de São Paulo, José Serra, chegou a um tal grau que o Jornal Nacional omitiu o acidente do vôo 1907 da Gol que deixou 154 mortos às vésperas do primeiro turno em detrimento da falsa denúncia.
A ofensiva não impediu a reeleição de Lula. A postura oposicionista aberta dos conglomerados foi um ‘tapa na cara’ do governo e provocou algumas tímidas reações. A primeira reação foi talvez a mais importante da gestão de Lula na área: a criação da Empresa Brasil de Comunicação (EBC) a partir da fusão da Radiobrás e da TVE do Rio de Janeiro. O projeto previa a constituição de veículos públicos de comunicação, entre eles a emergente TV Brasil, em contraposição à comunicação estatal que era feita pelas duas estruturas incorporadas na fusão. Um Conselho Curador foi criado com a presença majoritária de integrantes da sociedade (15 dos 22 membros), mas o método de indicação permaneceu limitado às indicações do Presidente da República.
Hoje a EBC mantém três emissoras (entre elas a TV Brasil, que possui 10 geradoras próprias e chega a 25 Unidades da Federação por meio dos serviços de cabo, satélite, além da parceria com TVs educativas estaduais), um portal, uma agência na Internet, oito rádios e uma radioagência. Apesar de ainda ter audiência baixa, que varia em média entre 0,3 e 0,8 de share, a TV Brasil e os veículos da EBC se constituíram em importante referência de uma comunicação diferenciada e que retrata a diversidade brasileira.
Um importante projeto que poderia impulsionar não apenas a EBC mas garantir a presença de outras emissoras do campo público no sinal digital aberto (como Câmara, Senado, Justiça, além das comunitárias e universitárias) seria a implantação de uma estrutura conjunta de transmissão nessa tecnologia, chamada de Operador de Rede. No entanto, o projeto patina e ainda não foi aprovadopela Presidência da República.
Abertura de mercado
Outra iniciativa que apontou para a busca por um equilíbrio dentro do setor foi a política de ampliação da destinação de verbas publicitárias oficiais. Segundo dados da Secretaria de Comunicação da Presidência da República (Secom), em 2003, o orçamento do governo federal para anúncios contemplava 499 veículos em 182 cidades. Em 2009, ele foi para, respectivamente, 7.047 publicações e emissoras em 2.184 municípios. A despeito de um direcionamento de caráter eminentemente regional, a publicidade governamental passou a comprar espaço também em outros veículos como blogs de alinhamento contra-hegemônico, o que não veio sem resistência dos conglomerados.
Uma mudança importante no cenário das comunicações teve início no segundo mandato de Lula. Vários projetos trouxeram propostas para revisar as regras para a TV por assinatura no Brasil. O projeto, que ficou conhecido como PL 29, tramitou no Congresso durante cinco anos e só foi aprovado no governo Dilma. A norma constituiu uma verdadeira “reorganização” do audiovisual pago pelo viés do mercado. Nela, foi selada a separação que reservou a produção de conteúdo à radiodifusão e a oferta do serviço às operadoras de telecomunicações. Além disso, acabou com o limite para o capital estrangeiro nessa atividade, que era de até 49%. Cada agente da cadeia produtiva (produtores e distribuidores de conteúdo) ficou impedido de entrar no negócio do outro. Isso pacificou, mesmo que parcialmente, a tensão entre a radiodifusão – que detém poder político e possui receio das teles avançarem sobre a produção de conteúdo – e o setor de telecomunicações – que controla a infraestrutura mas esbarrava na força regulatória das redes de TV. Como compensação, setores do governo e dos produtores independentes conseguiram incluir reservas de cotas de canais e de produção independente nacionais.
Anseios
Enquanto os conglomerados se debatiam nesse ajuste de mercado, a sociedade civil batalhava com o governo federal e com o empresariado do setor para realizar a 1ª Conferência Nacional de Comunicação (Confecom). O objetivo era produzir um espaço participativo de elaboração de sugestões ao poder público nos moldes do que já era feito em di-versos setores, como educação e saúde. Mesmo com a desistência de parte do empresariado, a Confecom foi realizada e aprovou mais de 600 propostas sobre diversos temas relativos à área, constituindo-se como um marco do debate público envolvendo a sociedade civil, o poder público e empresários.
Ainda sem evidências se derivaram da Conferência, duas iniciativas do fi nal do governo Lula pautaram a agenda da gestão de Dilma Rousseff na área das comunicações. A primeira foi a proposta de um novo marco regulatório, anseio antigo das entidades que lutam pela democratização da comunicação. O ministro das comunicações, Paulo Bernardo, chegou a prometer uma consulta pública sobre o assunto que até agora não tem previsão. Essa proposta tornou-se a principal bandeira da entidades que lutam pela democratização da comunicação este ano. A campanha “Para Expressar a Liberdade: uma nova lei para um novo tempo”, coordenada pelo Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC), vem pressionando o governo para deflagrar no Brasilprocesso semelhante à chamada Ley de Medios aprovada na Argentina.
O segundo projeto promovido pelo governo Lula foi o Programa Nacional de Banda Larga (PNBL). Inicialmente, o plano apostou na retomada da Telebrás como controladora da rede que reuniria as infraestruturas de fibra ótica de diversas estatais. No entanto, após a entrada de Paulo Bernardo, o PNBL aderiu à linha defendida pelas operadoras de telecomunicações de massificação do serviço por meio de desonerações fiscais.
Perigo
Nos últimos 10 anos, as gestões encabeçadas pelo PT e baseadas em amplas coalizões partidárias apresentaram uma postura amedrontada frente ao desafio de combater de fato o monopólio nos meios de comunicação e garantir que movimentos sociais e grupos historicamente alijados da esfera pública midiática pudessem difundir seus discursos. O poder político e econômico dos conglomerados foi fundamental para que iniciativas democratizantes não fossem levadas à cabo e para que o governo chancelasse a reorganização do marco regulatório do setor segundo a orientação do mercado.
Enquanto os veículos de comunicação comerciais se constituem como ator central do bloco conservador no país, a gestão de Dilma opta por não enfrentar a questão do monopólio no setor e segue engavetando a proposta de um novo marco regulatório para a mídia iniciada de forma tardia pela segunda gestão de Lula e apoiada pela sociedade civil. Essa ‘armadilha do medo’ pode custar caro ao próprio governo Dilma e à democracia brasileira.
Artigo Publicado Originalmente no Brasil de Fato