A atividade jornalística tem sido marcada pela precarização e intensificação do trabalho. Essa realidade pode ter piorado após a pandemia de Covid-19 e a reforma trabalhista (Lei nº 13.467/17). Pesquisa da Fundacentro e da Fenaj (Federação Nacional dos Jornalistas), com apoio do Ministério Público do Trabalho (MPT), pretende avaliar os impactos dessas questões na saúde mental do jornalista.
“A saúde mental no trabalho é o grande tema da SST [segurança e saúde no trabalho] no presente e no futuro”, afirma Pedro Tourinho, presidente da Fundacentro. A procuradora do MPT e membra da Coordenadoria Nacional de Defesa do Meio Ambiente do Trabalho e da Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora (Codemat), Juliane Mombelli, reforça a importância de se entender os reflexos à saúde do trabalhador diante das mudanças das relações de trabalho trazidas pela reforma trabalhista.
O presidente da Fenaj, Paulo Zocchi, destaca que nos últimos 10 anos houve uma “redução sistemática e gradativa do número de jornalistas contratados com registros em carteira”. O profissional é tratado como se fosse uma empresa prestadora de serviço ao ser contratado como PJ (pessoa jurídica). Por outro lado, existe uma crise das empresas diante das plataformas digitais que se apropriam gratuitamente do trabalho jornalístico. O acúmulo de funções e a redução de equipes completam o cenário.
Nova pesquisa
O assessor da Presidência da Fundacentro, Marcelo Kimati, coordena a nova pesquisa sobre saúde mental e trabalho dos jornalistas. O objetivo é fazer um estudo nacional com a categoria que relacione as variáveis trabalho, sofrimento e adoecimento mental, considerando a complexidade existente. Para tanto, é prevista uma amostra de dois mil jornalistas.
“No jornalismo, temos variáveis que irão interferir nessas relações com o sofrimento mental. Entram precarização do trabalho, trabalho remoto, diversas formas de vinculação. Ainda foi uma categoria vítima de violência institucionalizada nesse último governo. Boa parte da literatura está focada nesse aspecto, principalmente em profissional feminino”, explica Kimati, médico psiquiatra com mestrado em Ciências Médicas e doutorado em Ciências Sociais pela Unicamp (Universidade Estadual de Campinas).
O estudo traz a possibilidade de identificar variáveis vulnerabilizantes comuns a outras categorias profissionais. A pesquisa será quali-quantitativa. Na fase quantitativa, serão identificados os fenômenos associados ao sofrimento mental. O instrumento coletará dados sociodemográficos e de atuação profissional, com escalas autoaplicáveis e de rastreio de saúde mental. Será realizada uma análise multifatorial. Já a qualitativa trará entrevistas semiestruturadas com sujeitos que possuam as características apontadas como vulnerabilidade. Os dados passarão por análise de conteúdo, com amostra definida por saturação.
Sofrimento e prazer no trabalho jornalístico
Nas últimas décadas, estudos mapearam as condições de trabalho e saúde do jornalista. A Fundacentro realizou o projeto O cotidiano jornalístico: organização do trabalho, práticas, prazer e sofrimento, no âmbito do então Programa Organização do Trabalho e Adoecimento (Proort). A ação, coordenada pela jornalista e analista em ciência e tecnologia da instituição, Cristiane Reimberg, ocorria em paralelo com a tese de doutorado O exercício da atividade jornalística na visão dos profissionais: sofrimento e prazer na perspectiva teórica da psicodinâmica do trabalho, defendida pela servidora em 2015, na ECA/USP (Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo), sob a orientação da professora Alice Mitika Koshiyama.
Esses trabalhos resultaram em novas abordagens e na produção de artigos apresentados em congressos, como os da Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação (Intercom), entre 2012 e 2021. A questão central da tese era avaliar como se dão as relações de sofrimento e prazer no trabalho do jornalista. Para tanto, realizaram-se 21 entrevistas semiabertas com jornalistas de diferentes gerações, tendo a Psicodinâmica do Trabalho como referencial teórico e a análise de conteúdo como método.
Os resultados apontaram a flexibilização dos direitos trabalhistas, com freelancers, frilas fixos (trabalhavam todos os dias com carga horária, mas sem qualquer formalização) e PJs (também tinham carga horária que poderia configurar vínculo, mas emitiam nota como pessoa jurídica); longas jornadas; inexistência de compensação de horas e de banco de horas.
O sofrimento apareceu atrelado à organização do trabalho: condições de trabalho; precariedade; jornadas exaustivas; pressão do tempo e do prazo de fechamento; fazer o trabalho em tempo curto e não ter as melhores condições para realizá-lo; baixa remuneração; trabalhar fim de semana; a busca de quantidade ao invés de qualidade. Também apareceram questões ligadas à subjetividade, autonomia, realização profissional e ao processo de trabalho.
Os relatos dos jornalistas entrevistados mostraram um cenário de desgaste físico e mental, piorado em situações com maior quantidade de trabalho, mais pressão e mais tensão. Dores e adoecimentos fazem parte do cotidiano dos trabalhadores jornalistas assim como casos de assédio moral e sexual, especialmente para mulheres. “Suportar esses sofrimentos e ter prazer no trabalho, apesar deles, têm muito a ver com o sentido que o trabalho tem para os jornalistas e o grande espaço que ele ocupa em suas vidas”, aponta Cristiane Reimberg.
O prazer vem do trabalho bem-feito; da existência de temas com os quais se tem afinidade; da autonomia; do amor à profissão; da matéria publicada com o seu nome; do reconhecimento dos leitores; da conquista de trabalhar no local em que você almejava; do sentir-se participando do mundo; do contato com as pessoas e da aprendizagem com elas; da possibilidade de transformar uma situação e de conhecer diferentes realidades, de mostrar o que existe; de conseguir a informação; da apuração rigorosa; do prazer de contar histórias.
Novas abordagens foram publicadas nos artigos Trabalho e saúde mental do jornalista durante a pandemia de Covid-19, em 2020, e Condições de trabalho e saúde de professores universitários: um olhar para os docentes da área de jornalismo, em 2021.Esse último trabalho está ligado ao projeto “Caminhos para a melhoria das condições de trabalho e saúde dos professores na perspectiva das políticas públicas”.
Estudos pioneiros
O psicólogo e professor da Unicamp, José Roberto Heloani, foi um dos primeiros pesquisadores a estudar a saúde e o trabalho do jornalista nos anos 2000. O relatório Mudanças no Mundo do Trabalho e Impacto na Qualidade de Vida do Jornalista, por exemplo, é de 2003. Outras referências são os artigos: Vivendo no limite: quem são nossos formadores de opinião? de 2005, e O trabalho do jornalista: estresse e qualidade de vida, de 2006.
“É uma categoria muito desunida, que foi capturada pelo narcisismo. É midiática por essência”, avalia Heloani. “Vivemos cada vez mais em uma sociedade do espetáculo. Numa sociedade em tudo se transforma em mercadoria, a pior coisa a acontecer é você não ser mercadoria. E para quem trabalha com a mídia, é não estar na mídia. É não corresponder ao que empregadores querem que sejam”, completa.
Em uma das pesquisas que realizou, o pesquisador entrevistou 204 jornalistas. “Há uma lógica em que o desejo de ser jornalista esteja atrelado ao sucesso que você consegue ter. Portanto, o fazer sempre mais é uma lógica convergente com a do empregador, por isso o sujeito adoece”, avalia. O sujeito se autorreprime para ser e fazer cada vez mais. Essa cobrança vem de si mesmo.
Outras questões percebidas em seus estudos são longas jornadas; precarização do trabalho, como nos casos dos “eternos frilas”, em que as pessoas se submetem ou são demitidas; falta de tempo para a família; intensificação do trabalho; queixas salariais; medicalização e uso de drogas psicoativas; assédio moral e sexual, que funciona como máquina de expulsão e máquina disciplinar. “Aqueles que têm mais idade vão para cargo de gestão, porque não aguentam trabalhar (no ritmo que se exige). Não ultrapassam 20 anos (de profissão)”, aponta.
Há exigência do multiprofissional, em que o sujeito deve saber exercer todas as funções, o que está dentro de uma nova morfologia do trabalho. “A lógica do mais fazer ocorre pela manipulação e captura da subjetividade, em que o sujeito só sente incluído se for proativo em tudo. Essa nova morfologia faz com que num dos grupos focais que nós fizemos havia um repórter chefe, um assessor de imprensa, um redator, uma editora, um frelancer, um apresentador editor de TV, uma produtora, uma apresentadora de rádio, um colunista político e um locutor entrevistador. Nós conseguimos colocar todo mundo junto e depois que eles se apresentaram como tal, nós perguntamos o que de fato eles faziam. Nós descobrimos então que eles faziam um pouco de tudo”, relata.
Esse cenário faz com que a pessoa fique estressada, ansiosa, porque ela pode ser demandada a qualquer momento. A fragilidade psíquica resulta de como o trabalho é organizado e ocorre em função das cobranças. A satisfação existe porque as pessoas têm amor à profissão. Em sua avaliação, elas gostam do trabalho, mas não gostam da forma como trabalham. “A felicidade é sempre postergada. Mais tarde será melhor. É um mecanismo de defesa muito perigoso, que pessoas fragilizadas tendem a usar para continuar produzindo”, alerta o psicólogo.
Outras ações
O Ministério Público do Trabalho instaurou um Procedimento Promocional, coordenado pela procuradora e membra da Codemat, Cynthia Lopes, no Rio de Janeiro/RJ, para identificar as condições de trabalho dos jornalistas.
A ação ocorreu em função de dois casos: a morte do cinegrafista da TV Bandeirantes, em 2014, Santiago Andrade, após ser atingido por um rojão na cabeça durante manifestação no Centro do Rio; e o acidente com o carro alegórico da escola de samba Paraíso do Tuiuti, na primeira noite do desfile do grupo especial em 2017, no Sambódromo do Rio de Janeiro, que vitimou mais de 20 pessoas, sendo cinco jornalistas.
Sindicatos, profissionais e empresas foram ouvidos pelo MPT e houve uma audiência pública. Na ocasião, o Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Município do Rio de Janeiro apresentou relatório sobre o acidente.
A Federação Nacional dos Jornalistas produz relatórios anuais sobre violência contra jornalistas desde 1999. O secretário de Saúde e Segurança da Fenaj, Norian Segatto, destaca o crescimento de casos de violência contra esses profissionais ocorrido entre 2019 e 2021.
“Em 2019, foram registrados 208 casos de violência direta contra jornalista, 54% a mais do que no ano anterior. Em 2020, 428 ataques, 105% a mais. Em 2021, 430 ataques registrados contra jornalista”, denuncia Segatto.
Todas essas discussões estão disponíveis no vídeo Pesquisa Nacional sobre Condições de Saúde Mental dos/das Jornalistas, disponível no canal da Fundacentro no YouTube, gravado em 9 de abril.
Fonte: Fundacentro