Por Maria Alice Primo, com supervisão de Renata Maffezoli
A Inteligência Artificial (IA) já faz parte do cotidiano de muitas redações brasileiras, mas o uso da tecnologia ainda levanta dúvidas, tensões éticas e preocupações trabalhistas. Na noite dessa quarta-feira (10) , aconteceu a abertura do 40° Congresso Nacional dos Jornalistas da FENAJ, que contou com a presença de Samira de Castro, presidenta da FENAJ; Pedro Rafael Vilela, coordenador-geral do SJPDF; Rodrigo Bauer do Carmo, representante do Conselho Federal de Enfermagem (Cofen); Deyse Lene Santos de Moura, gerente do Ambiente de Comunicação do BNB; e o procurador Paulo Neto, Vice-Procurador-Chefe da Procuradoria Regional do Trabalho da 10 Região (DF e TO / MPT), que participaram da mesa que iniciou os trabalhos.
Delegados e observadores também participaram da solenidade inicial, aprovando, com a adição de uma proposta, o regimento interno e, em seguida, acompanharam a conferência magna com o jornalista Ben-Hur Corrêa.
Natural de Sergipe, Ben-Hur iniciou a carreira no jornalismo esportivo, migrou para as áreas de tecnologia e inovação e é um dos responsáveis pela implementação das políticas de uso de IA no Grupo Globo. Sua trajetória inclui participação ativa na construção dos princípios editoriais de Inteligência Artificial da emissora, publicados em 2023.
Durante a apresentação, Ben-Hur detalhou de que forma a IA tem sido usada como ferramenta de apoio e aceleração na apuração, organização e análise de grandes volumes de dados. Um dos exemplos citados foi a utilização de modelos para acompanhar julgamentos do STF, com transcrição em tempo real e cruzamento automático de documentos, relatórios e pareceres. Essa tecnologia permite que jornalistas naveguem rapidamente por informações volumosas.
O jornalista reforçou, porém, que a IA ainda apresenta erros significativos. “Esses modelos ainda erram muito. [...]A gente tem erros significativos de 45% e problemas de fonte em 30% dos dados”, afirmou. Por isso, destacou que o uso da tecnologia exige supervisão humana constante.“O humano no circuito vai ser aquele que vai dar o ‘tá valendo’ ou não tá valendo. A gente faz a curadoria, a ética do produto”, completou.
Ben-Hur também ponderou sobre o que pode ou não ser automatizado. Segundo ele, tarefas de back office, como transcrição, tradução e organização de material, já são amplamente aceitas. No entanto, etapas como edição, checagem e análise, que compõem o middle office, ainda geram resistência dos profissionais.
Outro ponto central da fala foi a crescente importância da confiança e da mediação humana no ecossistema informacional. Ben-Hur destacou que, apesar do avanço tecnológico, cerca de 60% da população brasileira se informa pelo WhatsApp, majoritariamente por pessoas de confiança como líderes comunitários ou comunicadores locais.
Essa dinâmica reforça o papel dos “microinfluenciadores”jornalísticos, dos comunicadores comunitários e dos jornalistas locais, cuja credibilidade direta com o público será decisiva nos próximos anos. Esse cenário já afeta processos eleitorais e debates públicos, evidenciando a necessidade de fortalecimento do jornalismo como prática humana e situada.
Soberania de dados e combate à desinformação
O palestrante ressaltou a urgência de alternativas nacionais em Inteligência Artificial, mencionando a importância de modelos treinados com dados brasileiros para mitigar vieses externos. Ele também lembrou que a proliferação de conteúdo sintético, potencializada pelo crescimento acelerado de modelos generativos, amplia riscos de desinformação e exige políticas públicas robustas de regulação, transparência e responsabilização sobre algoritmos.
Ben-Hur reforçou que, embora muitas funções sejam transformadas pela tecnologia, o papel central do jornalismo permanece. “Algumas funções vão desaparecer, mas isso não impede que a gente exerça a nossa função primordial”, ressaltou. Ele destacou que o Grupo Globo não registrou demissões por adoção de IA e que o uso é opcional: “As ferramentas são extensões da mente humana. Elas não são substitutivas. Se o jornalista não quiser usar, tudo bem”.
A palestra também abordou o risco de precarização caso empresas utilizem IA para substituir profissionais, sem mediação ética ou proteção trabalhista, apontando para a importância do debate coletivo sobre responsabilidades e limites.
Debate e contrapontos
Após a fala do palestrante, delegados participantes abriram um debate levantando preocupações sobre ética, implicações nas condições e mercado de trabalho, racismo algorítmico, impactos geracionais e regulação das plataformas digitais.
O jornalista Paulo Tadeu, da delegação de Roraima, trouxe uma crítica contundente ao caso recente de uma emissora no seu estado, que exibiu um telejornal inteiro narrado por IA. “A apresentação do jornal foi toda feita com IA[…] houve um debate nacional, fizemos uma nota de protesto. Isso significou uma quebra de ética na substituição do profissional”, afirmou. Ele ainda ressaltou que “naquele dia, toda a equipe foi demitida”, alertando para os riscos trabalhistas da automatização completa.
Também houve questionamentos sobre o impacto da IA na proteção da fonte, apontada como insubstituível pelo jornalista Alexandre Linares, da delegação de São Paulo. “Nenhuma tecnologia é capaz de proteger a fonte, porque todos os blocos são capazes de expor”, lembrou
O debate também abriu espaço para discutir os vieses raciais e de gênero presentes nas tecnologias de IA. A delegada do Distrito Federal, Leonor Costa, chamou atenção para o fato de que a categoria ainda enfrenta uma disputa antiga pela regulação das plataformas, lembrando que esse processo é atravessado por desigualdades estruturais.
Ao falar sobre os impactos diretos das inteligências artificiais na vida de jornalistas negros e mulheres, e de toda a sociedade, Leonor foi direta: “A gente sabe que o algoritmo é racista. O algoritmo é machista. O algoritmo é fascista, inclusive” .
Para ela, enfrentar esses vieses é parte essencial do debate sobre IA, porque eles afetam não só o trabalho, mas também a segurança e a permanência desses profissionais no ambiente digital.
O debate mostrou, assim, que a categoria vê a IA com ambivalência: ao mesmo tempo que é ferramenta potente e apresenta riscos estruturais, que devem ser olhados pelas entidades sindicais da categoria com atenção.
Ao encerrar a conferência magna, Ben-Hur destacou a importância de utilizar a Inteligência Artificial de maneira segura, ética e responsável, sempre preservando o papel humano na apuração, curadoria e decisão editorial. A interação com os delegados mostrou um panorama amplo de inquietações e reforçou a necessidade de que o 40° Congresso dos Jornalistas aprofunde discussões sobre regulação, proteção trabalhista, combate a vieses opressores e discriminatórios e reflita sobre a necessidade de atualização do Código de Ética, datado de 2007.
O Congresso conta com o patrocínio da Caixa, Conselho Federal de Enfermagem (Cofen), Banco do Nordeste (BNB) e da Confederação Nacional da Indústria (CNI), além do apoio da Federação Internacional dos Jornalistas (FIJ), Federação Nacional das Associações do Pessoal da Caixa Econômica Federal (Fenae), Associação dos Docentes da UnB (Adunb), Federação Nacional do Fisco Estadual e Distrital (Fenafisco), Sindicato dos Fazendários do Ceará (Sintaf-CE), Sindicato dos Bancários do DF e Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior (Andes).